Ônibus com equipe de reportagem atola 18 vezes na BR-319: ‘desafio físico e emocional’


Em uma viagem de três dias, a repórter Karla Melo e a cinegrafista Andressa Libório cruzaram a rodovia que corta o coração da Amazônia. Desafios de viajar pela BR-319
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Atoleiros, fome, sede e insegurança, esses foram alguns dos desafios que a equipe de reportagem da Rede Amazônica enfrentou ao atravessar a BR-319.
Em uma viagem de três dias, a repórter Karla Melo e a cinegrafista Andressa Libório cruzaram a rodovia que corta o coração da Amazônia. Em uma série para o Jornal do Amazonas 1º Edição, elas fizeram o registro da luta de quem precisa se locomover pela estrada diariamente.
A série de reportagens que mostram a realidade da rota imprevisível começam a ser exibida a partir desta terça-feira (27), no JAM1.
Inaugurada em 1976, a BR-319 tem 885,9 quilômetros de extensão, sendo 821 quilômetros no Amazonas e 64,9 quilômetros em Rondônia. Como a única ligação terrestre do estado com o resto do Brasil, a rodovia acumula uma série de imbróglios ambientais, grandes atoleiros e é motivo de discussão há muitos anos.
BR-319
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Karla e Andressa embarcaram na viagem em um dos ônibus, que saem diariamente de Manaus, para enfrentar a imprevisível BR-319, com destino a Porto Velho, em Rondônia. Ao lado de outras 43 pessoas, o trajeto, que inicialmente duraria 30 horas, levou três dias até à capital rondoniense.
Segundo a equipe, os primeiros indícios de que a chegada a Porto Velho demoraria foi quando o ônibus passou pelo ponto das pontes que desabaram entre setembro e outubro de 2022.
Nos locais, o tráfego está sendo feito por balsas, o que aumenta ainda mais o tempo de viagem. No entanto, esse não seria o maior dos desafios que elas enfrentariam.
A BR-319 é separada em quatro lotes: A, C, do Meio e o B. Cada um deles é operado por uma empresa de engenharia diferente, contratada pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (Dnit), para realizar a manutenção da via.
Os mais críticos, com barros e atoleiros e alvos de discussão para o asfaltamento, são o C e o do Meio. Nesses pontos que os veículos que passam pela rodovia tem que enfrentar grandes buracos e “piscinas” de barro.
Após passarem da cidade do Careiro, ainda no sábado, o primeiro atoleiro apareceu, exatamente no Lote C. Aquele seria o primeiro de outras 17 vezes.
BR-319
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A cinegrafista Andressa Libório conta que o pior foi no trecho do Meio, quando o ônibus demorou um dia para conseguir sair do local.
“Quando passou um pouco do Careiro, a gente atolou pela primeira vez. Aí eu entrei em desespero. O que mais demorou foi no trecho do Meio. A gente atolou no domingo e conseguiu sair na segunda à noite. A gente teve que andar, nesse tempo o motorista tentava tirar o ônibus do meio do barro, 7 km para conseguir água e uma comunicação”, disse a cinegrafista.
Para tirar o ônibus dos atoleiros, três vezes o veículo foi retirado por retroescavadeiras e tratores que estavam no local para realizar a manutenção da pista. As outras 14 vezes, os três motoristas do ônibus, que se revezavam na direção que tiravam.
Em um trabalho de esforço físico, Karla conta que os motoristas fincavam pregos gigantes no barro e amarravam os cabos de aço nas rodas do ônibus para fazer força e retirar o veículo. Chegou em um ponto, que após verem tantas vezes os condutores fazerem isso, os passageiros começaram a ajudar.
“Os passageiros começaram a ajudar porque eles viam o sacrifício dos motoristas. Contamos com a ajuda do Dnit, em apenas três. As outras foram todas pelos homens. Uma situação de atoleiro, que o barro cobria a porta do ônibus e a gente não conseguia abrir a porta”, contou Karla Melo.
Mutirão de solidariedade
BR-319
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Ao contrário de viagens cotidianas, a rota pela BR-319 é cheia de desafios, tanto para os motoristas, quanto para os passageiros. O esforço físico e emocional é um sentimento constante ao longo de toda a viagem.
Com tantos atolamentos e demora para chegar ao destino final, chegou um momento da viagem que a água e a comida que os passageiros tinham em estoque não eram mais suficientes. Mesmo com dinheiro para comprar alimento, a falta de comércios ao longo da rodovia afetava a sobrevivência.
Sem suprimentos básicos para sobrevivência, a escassez criou um verdadeiro mutirão de solidariedade entre os passageiros, que passaram a se ajudar com o que tinham levado de alimentos.
“Acho que desafio físico e emocional, porque depois do quinto atolamento, cresce a vontade de não atolar mais e chegar logo no destino. De domingo para segunda, a gente tava sem água e com pouco comida. Agora imagina: mais de 40 pessoas, foi um verdadeiro mutirão de solidariedade, porque, por exemplo, a gente tinha uns pacotes de bolachas. Eu comia um, dava um para Andressa e o restante a gente dividia”, disse Karla.
Para tomar banho, durante os três dias, passageiros usaram as águas dos igarapés ao longo da estrada para se limpar. As necessidades eram as margens da BR-319. ” A gente passou quase três dias sem conseguir tomar banho. Então, assim, eu só queria chegar”, contou Karla
Problemas de saúde também atingiram a equipe. Em um momento da viagem, Andressa apresentou febre e vômitos. Parou o trabalho por duas horas para descansar e mais uma vez a solidariedade ajudou a equipe: um passageiro deu um remédio para a cinegrafista que a ajudou a melhorar.
“Eu passei mal, sentei lá e pedi ‘meu Deus, eu não posso passar mal aqui, não tem nada, é uma estrada isolada e eu preciso de força’. Aí a Karla conseguiu remédio, eu tomei, passei umas duas horas descansando, eu melhorei e voltei ao trabalho. Mas foi difícil”, disse Andressa.
Histórias de reencontros e superação
Desembarque em Porto Velho, após superação da viagem pela BR-319
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Reencontro com a mãe após 23 anos, busca por um tratamento de câncer e mudança de vida, foram algumas das histórias que a equipe encontrou no ônibus enquanto cruzava a BR-319.
Com histórias marcantes e com vidas que dependiam do trajeto, a viagem cheia de obstáculos valeria a pena quando chegassem ao destino final para cada um atingir seu objetivo
“São várias histórias que a gente cruzou na BR e todas de muita bravura e extrema necessidade. As pessoas perguntam ‘qual a real necessidade de asfaltar a BR?’ É porque ali moram pessoas, é uma BR que conecta vidas e famílias. Uma viagem levar tanto tempo e de ser tão difícil, no aspecto humano e emocional. Porque para enfrentar, a pessoa tem que ter um propósito.” apontou Karla Melo.
Após passar por tantos atoleiros, a equipe conta que foi impossível segurar a emoção ver uma estrada asfaltada e que não enfrentariam mais nenhum atoleiro. A vontade de ver cada um concretizando seu objetivo e chegando em segurança em Porto Velho, foi um sentimento compartilhado por todos.
“Quando chegamos em Humaitá, que o motorista falou ‘agora tem asfalto e tá tranquilo’, foi quando eu não consegui controlar o choro, porque em várias horas, era a primeira vez que eu estava vendo asfalto”, finalizou Karla.
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